Surge, de Ser Castro: Pôr os abraços em dia.

Surge, de Sérgio Castro (no caso, Ser Castro) é notoriamente um disco solitário e introspetivo na sua conceção, mas coletivo e virado para fora no que respeita à concretização, tanto em termos de produção, de execução e até de expressão gráfica e artística (quem mais daria liberdade aos amigos para ilustrar as canções com trabalhos originais e lhes daria o destaque de um livro de exemplar qualidade gráfica em formato de disco vinil?). De facto, o livro é a primeira grande surpresa deste trabalho, diria, multidisciplinar. Cada canção tem direito a uma ilustração original, um texto explicativo em duas línguas e uma ficha técnica impressos com uma qualidade invulgar. O CD aparece na última folha, num singelo envelope plástico, como uma adenda à obra. Pegamos nele, pomo-lo a tocar (ainda têm leitores de CD? eu tenho) e rapidamente somos lembrados do que afinal se trata aqui: música! E da boa!
Em Surge, Ser Castro parece ter percebido que, com tantos anos de música em projetos coletivos e alheios, se tinha esquecido de revelar mais um pouco de si. E o que faz, neste primeiro disco a solo (sim, penso que mais se seguem), é uma rápida retrospetiva da “parte de trás”, digamos assim, dos seus 50 anos de música. O autor vai a cada uma das suas “gavetas” de vida e revela um pouco de cada uma, sempre com a ajuda dos amigos que a cada uma pertencem (ou lamentando a sua falta, mas nunca os esquecendo). O resultado é um álbum necessariamente heterogéneo em termos estilísticos, mas de grande qualidade, primorosamente tocado e cuidadosamente produzido. Todas as canções são muito diferentes umas das outras, sim, mas nunca há a sensação de se perder o fio à meada, mesmo não seguindo o alinhamento uma linha temporal, ou se calhar mesmo por não a seguir.
Surge poderia ser um álbum biográfico, mas acaba por se tornar um disco sobre momentos, amizade, saudade, agradecimento e reconhecimento. Mais do que tentar fechar capítulos, parece mais um assumir do lugar das coisas para seguir em frente. Assumem-se perdas, lembra-se quem já não está e promove-se o encontro com os amigos que se foi fazendo pela vida fora, como queremos fazer todos a certa altura das nossas vidas. No caso, nem todos os que estavam previstos conseguiram chegar a participar, o que deixa espaço em aberto para continuar a função em obras futuras. Se os discos a solo do Sérgio Castro se alimentam de amizades, pois que venham mais amigos, que nós cá os saberemos receber.
No fim, afinal o que podemos ouvir em Surge? Como se consegue enfiar cinco décadas num só álbum e de que constam esses 50 anos em termos estritamente musicais? Pois, é difícil, impossível até, inserir este disco num único género (é sempre, com o Sérgio Castro) mas, no meu caso, consigo ouvir aqui um conjunto de influências que não é certamente de lamentar, a saber: The Beatles, Moody Blues, Go Graal Blues Band (a original), Bowie, Scott Walker, Bob Seger, JJ Cale, Peter Green, Allman Brothers, Billy Joel, Zappa, Queen… e sim, Arte & Ofício e Sérgio Castro. Trabalhadores? Nem por isso, mas para isso temos aí os respetivos discos, certo?
Grandes momentos a assinalar: A voz de Daniela Costa no refrão de The Dark Hour; o solo de guitarra acústica e os coros em Slow Down; o diálogo das guitarras e o baixo “refilão” no final de Douro Blues; o piano e a guitarra acústica (que faz uma “caminha sarcástica”) em My Delightful Friend; o solo de guitarra acústica em Hard Blow; Fernando Nascimento em The Same Old Song. E mais uns quantos, mas a prosa já vai longa e já escrevi para aí o triplo do que planeei, que nisto dos blogues, a coisa tem que se ler rápido.
E é verdade. Também eu deixei passar uns abraços pelo caminho. Todos deixamos, penso eu!
Obrigado, Sérgio.
Blog: Melomanias de Muguele