SURGE: VIAGEM AO CENTRO DO SER
Como considero que o Sérgio é o maior “rock performer” português (talvez o único), ao olhar a espantosa e sugestiva capa do livro que transporta o CD, tive logo a sensação de que vinha ali “rockada” da forte.
Puro engano. Enquanto durava a audição da obra, fui percebendo porquê.
Após de 50 anos de carreira, o Sérgio decidiu fazer o seu primeiro disco a solo depois de muitos outros magníficos trabalhos das bandas por onde passou. Reconheça-se que é muito tempo. Ou talvez não. É preciso coragem para fazer um trabalho assim, porque fazer um disco sem amarras, sem colagem a projectos, sem o conforto do colectivo, depois de tanta estrada marcada na pele, é como despir-nos numa praça pública em dia de cerimónia oficial.
Acho que o Sérgio se quis libertar de padrões, de ideias pré-concebidas, e mostrar-se igual a ele mesmo fazendo-o da forma que achou mais clara: contar a sua história. Mas contá-la, não como uma biografia de vida, mas como uma viagem temporal ao íntimo do que realmente é. Uma viagem ao centro do seu ser.
O resultado: uma incrível jornada intimista que começa com a primeira canção composta em 1969 e vem por aí fora até hoje.
É um disco calmo, maduro, seguro, onde cada nota e cada pormenor, estão no sítio certo. O espelho de alguém que carrega sabedoria de décadas de música composta e tocada, quase sempre demasiado à frente da lusa corriqueirice roqueira, ousadia que lhe custou caro. Por cá, ainda hoje, ter talento pode ser perigoso.
SURGE é um disco emocional, afectivo. Por vezes comovedor. E muitas vezes o espelho onde cada um de nós se pode rever.
Sérgio quis, talvez, exorcizar memórias aprisionadas que tinha no mais profundo do seu ser, e libertá-las de vez. E escolheu o melhor modo de o fazer: partilhá-las com os outros.
Se era isto que queria, conseguiu-o. E conseguiu mais: levar-nos de viagem com ele. Este disco também é a história emocional de muitos de nós.
Da extraordinária embalagem gráfica e das colaborações musicais de luxo, falarei noutra altura.
Agora falo de um disco essencial. Puro feeling num mar de calma que só a experiência lega.
Um mar de calma onde “Learning” ou “My Delightful Friend” são jóias imaculadas. Ainda há músicas perfeitas.
SURGE era a viagem que o Sérgio sonhava fazer. Que lhe faltava fazer. E que eu esperava que um dia fizesse.
É muito bom ouvirmos canções onde sentimos que também estamos dentro delas.
Chico Gouveia